"Sur la place chacun passe, chacun vient, chacun vas..."
Me arrepio todinha só de ouvir essa palavras porque sei que Carmen de Bizet está começando! A primeira vez que assisti a essa ópera eu devia ter uns cinco anos e foi quando meus pais ganharam uma fita VHS com a versão em filme estrelada por Julia Migenes e Plácido Domingo nos papeis principais. Desde então a história e suas personagens entraram para a minha vida e eu os visito rotineiramente.
O problema de assistir a um obra mais de 50 vezes (não estou exagerando, podem perguntar para a minha mãe), é que aquela versão se torna a sua referência e qualquer desvio daquela interpretação te parece inaceitável. E quando o parâmetro é aquele elenco da produção de 1984, o bicho pega para achar encenação à altura das suas expectativas.
Ciente da minha condição de Carmen-chata e temerosa após ouvir rumores de "releituras" na direção de cena e cenografia do Allex Aguilera, fui assistir à apresentação no Theatro Municipal com coro e orquestra da casa. Eu poderia passar cena a cena aqui com minhas observações, mas acho que perderia meus poucos leitores então vamos aos pontos mais importantes.
Melhor artista no palco ontem foi a soprano Ekaterina Bakanova no papel de Micaëla. Seu dueto com José Manuel Chú (Dom José) no primeiro ato ("parle moi de ma mère...") foi emocionante e o solo no terceiro ("Je dis que rien ne m'épouvante...") acompanhado das macias trompas da OSTM deu vontade de rezar junto. Outros pontos altos incluem a dança flamenca com chales, leques e saias rodadas durante a primeira cena do segundo ato com todos os ciganos reunidos chez Lillas Pastia; o prelúdio do terceiro ato com aquele dueto de flauta e clarineta leve como uma pluma plainando sobre as montanhas espanholas; e a cena final onde Edineia de Oliveira mostrou todo o deboche do qual uma verdadeira Carmen é capaz!
O grande problema da noite foi o desencontro entre coro e orquestra que o maestro Isaac Karabtchevsky não soube consertar. Com o canto descasado da música em diversos momentos, sempre um pouco mais lento, várias das minhas cenas favoritas acabaram prejudicadas incluindo a sempre esperada Habanera e os meus xodós pessoais: a cena da briga na fábrica ("Au secours! Au secours!") e a partida dos ciganos para as montanhas ("La vie errante, le ciel ouvert...").
Fora isso, a tal da "releitura" da direção de cena pecou, a meu ver, em alguns aspectos incluindo: (1) Habanera sendo cantada de cima de um balcão longe dos homens; (2) Dom José dando um amasso na Micaëla depois de ler a carta da mãe; (3) Carmen cantando "Les tringles des sistres tintaient" estatelada na cadeira; (4) violão e palma de figuração para o Escamillo (que, alias, passou desapercebido por mim) no seu célebre "toréador en guarde"; (5) as brigas do Dom José com os seus concorrentes; (6) a projeção da tourada no último ato que certamente me lembrou que eu odeio touradas mas que cortou totalmente o clima da ópera e desviou a atenção da música e do coro. E, como de hábito, o recurso da projeção de cenário foi subutilizado.
Mas como eu dizia no início desse texto, essa ópera foi um dos meus primeiros contatos com a música clássica, fez parte da minha formação musical e continuará encantando milhões por anos a fio por um simples motivo: a música é formidável, forte e emocionante! A cada récita eu descubro um novo requinte de harmonia, uma sutileza outrora despercebida, um solo escondido no meio da orquestra. E é ao vivo que essas jóias se mostram e que você percebe toda a vulnerabilidade do artista e do personagem que está ali na sua frente. Nenhuma interpretação será igual àquele filme mas também nenhuma será igual a essa récita que eu assisti ontem. E isso é mágico!
Encerro esse texto com as palavras da Ana Carolina Marques, militante do movimento feminista, que me acompanhou ontem ao Theatro: "Por um novo final de Carmen, onde ela tira uma navalha da bolsa, degola D. José e segue divando com a ciganada." Se algum amigo compositor quiser encarar o desafio, eu me candidato a adaptar o libretto.
Uma coluna sobre música erudita, concertos e devaneios de uma amante dos clássicos
Subiu a cortina
Caro leitor,
Seja bem vindo ao mundo das cordas, madeiras e metais. Aqui você encontrará minhas impressões sobre diversos concertos de música erudita realizados na cidade do Rio de Janeiro. Também compartilhará dos meus devaneios sobre o mundo dos clássicos e algumas dicas de programas, filmes e discos. Só peço a cortesia de fazerem silêncio durante o concerto (e nada de ficar desembrulhando balinhas). Obrigada!
Bravo , AMANDA ... parabens pela excelente e sincera crítica !!! adorei ... bjs...sucesso sempre !!!
ResponderExcluirAmanda , estou estupefato com voce , vc vive assistir a ópera de forma encantadora ,fiquei muito feliz inclusive por seus elogios ao nipe de trompa é claro .
ResponderExcluiragora sei onde encontrar voce e suas criticas construtivas que muito enaltece o mundo da Musica clássica .
obrigado por voce existir e participar da Musica na platéia de nossas salas de concerto,
bj grand
ismael