Subiu a cortina

Caro leitor,

Seja bem vindo ao mundo das cordas, madeiras e metais. Aqui você encontrará minhas impressões sobre diversos concertos de música erudita realizados na cidade do Rio de Janeiro. Também compartilhará dos meus devaneios sobre o mundo dos clássicos e algumas dicas de programas, filmes e discos. Só peço a cortesia de fazerem silêncio durante o concerto (e nada de ficar desembrulhando balinhas). Obrigada!

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A loira, o herói e o ornitorrinco

27.III.2012

Imagine a cena: você é um compositor e um trompetista bate na tua porta e te pede para escrever um concerto usando o trompete modificado que ele acabou de inventar. Ao contrário dos trompetes que você está habituado, que são bem limitados, esse instrumento tem uns buraquinhos a mais, cada um com uma válvula, abrindo um novo mundo de possibilidades de execução. Seus olhinhos brilham ao vislumbrar as novidades que irão surgir e você imediatamente começa a trabalhar. A empolgação te leva a experimentar e a testar os limites do brinquedinho novo, resultando numa peça que explora a força, a estabilidade, a delicadeza e a recém adquirida agilidade do metal. E como você foi aluno de W.A. Mozart, você coloca umas notinhas a mais, além do limite presumivelmente exequível, só pra dar um charme. Será que você poderia antecipar que 209 anos depois, uma linda jovem inglesa estaria do outro lado do mundo, tocando essa peça diante de uma orquestra e plateia de brasileiros?

A lei de ação e reação realmente cria situações únicas e maravilhosas. Eu já tinha escutado Alison Balsom tocar esse concerto do J.N. Hummel em gravações, mas ao vivo é outra história! Elegante e expressiva, a moça reage a cada nota emitida pela orquestra e as frases parecem sair do trompete com a maior naturalidade (e segundo testemunhas, acompanhadas de uma cachoeira). A solista impressionou o público com a sua habilidade e fôlego, principalmente no terceiro movimento que aparenta ser o duplo twist carpado dos solos de trompete.

Infelizmente, uma outra sequência de eventos, desencadeados sabe-se lá quando (posso ficar algumas horas aqui brincando mentalmente com as possibilidades), resultou no desabamento parcial do prédio anexo ao Theatro Municipal com desdobramentos que afetaram até as engenhocas do palco da grande sala. Consequentemente, o palco desse encontro foi o Vivo Rio, um espaço programado para outras modalidades de música (e em alguns casos a anti-música). Fiquei muito feliz da Orquestra Petrobras Sinfônica ter conseguido tocar sem microfones, recorrendo apenas a uns tapumes de madeira no fundo do palco. Contudo, ao contrário do que afirmou o maestro Isaac Karabitchevsky no início do espetáculo, a acústica não é boa. Apenas quebra um galho nesse momento de crise, enquanto o TM, a Sala Cecília Meireles e a Cidade das Artes permanecem fechados. Mas a nossa saga está apenas começando!

A grande batalha da noite foi encarada por uma orquestra inflada, cheia de cordas (do jeito que eu gosto) e muitas trompas: Ein Heldenleben (A vida de herói) de R. Strauss. Os poemas sinfônicos têm uma grande sacada que torna a sua apreciação, na minha opinião, muito mais agradável: eles têm uma narrativa muito clara! No caso dessa obra autobiográfica, o compositor vira um personagem dentro da história, contextualizada no tempo e no espaço pelo seu próprio estilo e narrada pelos músicos. Para que tudo dê certo, a história precisa ser boa e estar bem escrita, o narrador tem que saber contar e a plateia deve prestar atenção para não se perder.

O herói apresentado no domingo pela OPES é jovem, forte e cheio de vigor. Ele é leve e ágil, vagando pela vida, a princípio sem grandes tormentas ou preocupações. Mas seus inimigos não tardam a chegar. São numerosos e distintos entre si: enquanto alguns são apenas empecilhos facilmente dominados, outros representam desafios e ameaças mais graves (literalmente). Esses obstáculos desanimam o nosso herói e ele chega a perder as forças e a esperança, caindo em uma lúgubre melancolia. Eis que surge a sua musa, o seu amor, trazendo luz de volta para a sua vida. Mas a moça não é fácil não! Ela alterna de um humor doce, delicado e acolhedor para um temperamento ora brincalhão ora firme e determinado. É a ciclotimia feminina na sua essência (e muito bem retratada pelo solista Felipe Prazeres). Com a sua companheira ao seu lado, nosso herói enfrenta o campo de batalha! Há muitas baixas mas também muitas vitórias. Golpes, flechadas, bombas são atirados em todas as direções e o exercício é extenuante. No final, apesar das cicatrizes e feridas ainda abertas, nosso herói pode olhar para trás e sentir com orgulho que deixou um belo legado. Então, ele começa a deixar esse mundo. A sua história, os seus inimigos, as suas dores são largadas para trás enquanto a única coisa que segue com ele, a única que importa, é o amor.

Acho que depois de assistir a uma obra dessas, encarar os desafios do cotidiano fica um pouco mais fácil...

OBS: O ornitorrinco foi pegadinha. O texto ficou longo e eu precisava prender vocês até o final hehehe...



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